Eu “agostista” me confesso, embora não desdenhe, e pratique quando os astros para tanto convergem, uns diitas de veraneio de quando em vez, normalmente com fronteira dentro da península ibérica e, as mais das vezes, da região minho-galaica.
De resto, assim diria o pasteleiro celebrizado pelo Herman José, “eu é mais Esposende”!
Precisando, Ofir é o meu sítio, o meu mar é o que vai da Apúlia às Marinhas, mesmo a norte de Esposende, a temperatura dele é a que se sabe e atira com muita lusa gente para o reino dos algarves, de que uma ou outra vez me torno súbdito, só na época encostada à alta, que esta não se pode aturar.
Mas em Ofir, apesar da temperatura da água e daquele assediante ventinho do Norte, tenho a calma da zona, mesmo a urbana, o estuário do rio, seja vazia ou cheia a maré, a penetrar-me da calma com que ali escorre para o mar, o cheiro intenso da flora autóctone e o intenso odor a maresia, consequência da abundância de sargaço que torna a estadia por aquelas paragens das mais salutares que imaginar se possa.
Acresce a sardinha!
A sardinha é, na época, o meu petisco favorito.
Como-a tanto como entrada de refeição de outros peixes, que os restaurantes dali (permitam-me destacar o meu favorito de há muitos anos – A SALGUEIRA – em Cedovém, entre Ofir e Apúlia) oferecem em grande variedade e muita qualidade, assim como prato principal ou ao lanche.
Quanto mais o agosto vai adiantando mais saborosa se vai pondo a sardinha, mais fácil de despelar e de destacar os lombos da espinha.
Como entrada ou lanche, a sardinha como-a como se fosse marisco: absolutamente solitária, sem batata, nem salada, nem pimentos, nem azeite, nem vinagre. Sardinha e ponto final!
O ritual do arranjo desse luso exemplar da família dos clupeídeos, a que a sardinha pertence, é o mesmo que uso para todo e qualquer peixe que se me ponha inteiro no prato.
Admito que seja mania, ou estreiteza de jeito para variantes, mas peixe servido inteiro no prato só o sei arranjar de uma maneira, que adiante explicarei.
Claro que se for em popular pique nique, ou evento do género, também sei pegar na iguaria pela barbatana traseira de um lado e pela cabeça do outro, e assim a levar aos dentes, que, nesta emergência, os lábios não são para ela chamados. Para ajuda, há quem lance mão de um naco de broa; mas comigo, basta a dentição para transformar o animal falecido e assado em pouco mais que espinha.
Porém, como gosto mais de a comer é, como disse, absolutamente a solo, no prato.
O descrição que farei supõe sardinha bem alimentada, e de competente assadura.
Começa a função pela forma como o piscídeo é colocado no prato.
Esse, como todos os peixes servidos inteiros em dose individual, tenho de o colocar de cabeça para a esquerda e barriga voltada para mim. De outro modo não consigo!
Então, delicadamente, começo por levantar, com a faca, a pele bem junto à barbatana caudal, e introduzindo devagar o instrumento pelo lombo adiante, levanto toda a pele do lado voltado para o céu, deixando aquela cativante ilharga branca de veio castanho todinha à vista e, arrastando delicadamente a pele enquanto com o garfo soergo a sardinha pela cauda, igualmente destaco a pele do lado de baixo.
Segue-se, com todo o cuidado, golpe longitudinal na lombada, da cabeça à cauda e, com a faca, que faço rodar ligeiramente, destaco a parte superior do lombo que, assim, fica pronto a ser introduzido de uma só vez na boca, para o efeito previamente aberta apenas quanto baste.
Deglutida essa fatia, dedico-me à parte ventral do lombo, exigente de um pouco mais de perícia, em virtude das finíssimas espinhas que protegem os coração e aparelho respiratório da nossa amiga sardinha.
Aí há que, com delicadeza a roçar a meiguice, levantar a carne envolvente das tais espinhas e, correndo bem a coisa, como normalmente corre, aqui temos o resto do costado superior do animalzinho pronto a seguir o caminho do já deglutido.
Com a espinha completamente à vista, introduzo então o garfo por baixo dela junto à barbatana traseira, por forma a que aí fique presa entre dois dentes do garfo.
Levanto este com todo o cuidado, e com ele a espinha, começando a separá-la do lombo inferior, usando, para o efeito, a faca que vai prendendo contra o prato o lombo destacado, até chegar à cabeça, sempre com especial atenção à parte das espinhas peitorais, que devem manter-se fixadas na dorsal, e aí temos um verdadeiro bife de sardinha assada, pronto a dar continuidade ao prazer inicial.
Acabada uma, é só repetir a receita na seguinte até que o corpo ou a inteligência decretem - basta!
Acompanha-se com bom vinho verde tinto, mas se for branco a sardinha não repara.
Aos meus esforçados leitores, votos de boas férias e bom apetite.
Guimarães 26 de julho de 2016
António Mota-Prego
(a.motaprego@gmail.com)