INTRODUÇÃO

Pedrinhas e Cedovém são dois Lugares à beira mar, situados entre Ofir e a Apúlia, no concelho de Esposende - PORTUGAL.
Localizam-se num lugar calmo em cima do areal, onde pode almoçar e jantar com uma gastronomia típica local e poder usufruir de uma paisagem natural marítima Atlântica a uma temperatura do Litoral do Sul da Europa. Os caminhos e os percursos de acesso ainda se encontram em areia e criam uma composição que conjuga de forma perfeita entre a topografia e época das construções, o que dá um cunho único ao Lugar. Se estivermos acompanhados com alguém especial, imediatamente nos apaixonamos e nunca mais conseguimos cortar o "cordão umbilical" com este LUGAR cheio de magia e de uma beleza natural única.

2019/05/03

UMA HISTÓRIA (contada) DE 1908, HOJE COM 111 ANOS DE EXISTÊNCIA !

Na edição semanal do Jornal "O Século" em 1908

FLOR DE MAIO


«A Apúlia é hoje, como no tempo de Ramalho Ortigão, uma praia obscura cortada gracilmente em enseada, formando do mar à serra um sistema de planos a que o corte em anfiteatro, acompanhando o espreguiçamento da linha de água, dá o gravado poético de uma marinha.

O primeiro plano é o mar, um mar de safira, um mar de lago, translucido, que só carrega o semblante glauco quando a borrasca o altera; o segundo plano, areal por onde botes humildes leiloam a fantasia ortográfica dos seus patrões, como aquele que no flanco de estibordo declara:

"Sou o correio jaral
não me posso demorar."
e no de estibordo:

"Ou passa ou deixa passar."

Com esta divisa não podia deixar de chamar-se A Belleza dos Amantes.

 Perpendicular à linha de água, em carreira, como construções no cais de uma baía, formando ruas para onde deitam também outras portas, casetas de tecto palhiço guardam o arsenal do sargaceiro.

Fotografia de 1908 - lugar das Pedrinhas - Apúlia - Esposende
 Que o mar já outra hora passeou para lá da Apúlia-velha diz-lho o substrato de godos que por qualquer corte de terreno se encontra, como no lanço da Póvoa, sobretudo nas alturas da Estela, dí-lo os olhos marinhos, comunicações com o mar por infiltrações; e que ela é, de feito, uma sobrevivência de antigo e averiguado porto romano, diz-lho o seu nome de baptismo que querem(1)! e haja sido dado pelos romanos para empreitar o nome da sua Apúlia (deles), diz-lho o perfil e guarda roupa do sargaceiro, mineiro do Atlântico que sem perder a costa de vista, sem se afoitar a mais de vinte ou trinta metros da praia, dá de extra num mês "o pão" para todo o ano.

Que o sargaceiro misto de lavrador e de marítimo é afinal um cavador que do leito arenoso saca o seu sargaço, como seio da terra colherá amanhã o bolbo feculento que a boa "Mãe" lhe multiplicou.

É mais um importador que um pescador. Os seus depósitos são o Atlântico, lá para o Goulf-Stream onde revolta o "mar dos sargassos", bem familiar aos náuticos. Os grossos temporais, rolando as camadas oceânicas, desagregam grandes massas de sargaço que trazidas pelas ramificações das correntes Stream, vêem dar à nossa costa, sem que o lado, sem que o sargaceiro gaste cinco reis nesse longo transporte transatlântico da sua carga.

Uma dessas ramificações qualquer atira para o regaço da Apúlia com densos rolos de sargaço sempre depois de temporais, especialmente pelas trovoadas de agosto.

E enquanto não entra o vapor - as borrachas de maio ou o trovão de agosto - fica pelo campo, desinteressado do mar.

Chega maio. Renta, então a praia e sem se afadigar, sem brigar como os pescadores na partilha do mar, um ou outro, mais precisado ou mais poupado, enfia a branqueta, põe a ganchorra  ao ombro e vai pentear as algas para cima de uma jangada.

Sargaceiro com a sua branqueta e ganchorra ao ombro
É quando ele colhe a Flor de maio, isolado, uma meia dúzia de sargaceiros em toda a praia, destacado da grande massa que acode ao argaço de agosto, - que a figura do sagaceiro se estuda, se fragmenta e melhor se pode focar esse tipo e esse quadro regional que, que embora se anuncie já pelo resto da costa, em nenhum trecho dela atinge essa ardente cor local e de mise-en-scêne como nas águas de Apúlia.

Vê-lo correr praia fora, mar dentro, as pregas da branqueta  ondeadas pela marcha, é ver a sombra de um soldado romano.

Pescador de sargaço (Lugar das Pedrinhas) entrando no mar vestido com a branqueta
A branqueta é uma sobre-casaca de lã, grossa, com botões da mesma lã grosseira, cingida ao busto como uma farda, terminando no pescoço por uma hirta gola de uniforme e abrindo - da cinta ao joelho, onde termina - em farta roda, como um redingote de 1820. Sem calças, sem camisola, a branqueta extreme no corpo e apertada por cinto de couro notavelmente largo, cuja fivela é um argolão de ferro, na cabeça um sueste, um chapéu mole ou mesmo uma carapuça, o sargaceiro está  muito longe do poveiro, do sanjoaneiro, do ovarino, de cujo misero aspecto, encolhido e andrajoso, o distância e destaca aquela roupagem quase marcial.

Branqueta
A branqueta, indubitável deixa dos primeiros povoadores de Apúlia, nunca podia ser o trajo de um pescador, de um marítimo, assim comprida, assim rodada e justa ao busto. E a própria nau, em que eles apanham o sargaço, está a dizer que aquilo não é gente que viva no mar e que do mar espere mais do que essa ajuda fortuita com a de um barco a vapor que, escouceado pelos Cavalos de Fão, dê à costa caixas de marrasquino ou fardos de algodão.

Se é uma  embarcação, é uma embarcação pequena, um bote quando muito, mas o seu cavalo de batalha é uma jangada. E ainda não é uma jangada de Ulisses, abatida do roble centenário pelo machado mitológico. É um estrado composto de fileiras de dois ou três pequenos rolos de casca de sobreiro, cilíndricos como cortiços de abelhas, dispostos em três faixas longitudinais e paralelas, contidas lateralmente por duas tábuas, e o todo atravessado por dois toros de pinheiro que deixam para pegas as extremidades excedentes. Outras têm um rodado como carros toscos de jardim, indo para a água com rodado e tudo. Vêm-se bem que não é nau para grandes tormentas.


O sargaceiro salta à borda de água, empurrando a jangada com o pé, ao embarcar, e deixa-se levar pela voluntariedade da vaga, sem se importar para onde, porque todo o seu cuidado é começar desde logo a esgravatar o argaço nas areias.

Sem remo, sem leme, valendo-se da própria vara da graveta se quer nortear-se, de pé, nem o declivoso dorso da onda nem o embate da jangada nos penedos o desequilibram.

fotografia de 1908
Outro aspeto da colheita da flor de maio. A galteira ou graveta
(que é um enorme ancinho de ferro) pende do cabo flexível e longo,
que atravessa o barco, formando um grande arco
Nem olha para o seu, nem para a terra, nem para a nau.
O pescador esta´sempre de olho na rede e coração no barco. O sargaceiro não; todo ele é um motor de graveta.

E, como pescador, não o apoquenta a falha. Vivendo da terra tanto ou mais do que o mar, o sargaceiro não se rala, não vai requerer os elementos como pescador.

"Não há sargaço?"

"Já houve. - Tornará a haver!..."

Pelo primeiro sol da manhã ou pela agonia da tarde, de quando em quando, maio adiante, lá corre pela praia uma sombra creme: é o sargaceiro, a que a ilusão da perspetiva e o talho da branqueta  engrandecem, esticando-o até a estatura de homens de outras idades.

Daqui a segundos, Hércules  está exumando da ondina as algas maiores - A Flor de maio, - cuja cabeleira os dentes de ferro do monstruoso pente da graveta desnastram à luz, pingando pérolas que tornam a cair, como lágrimas de sereias, no colo azul do mar.

Como o pescador do Sena que tem sempre a seu lado a companhia de um mirone, o sargaceiro da Apúlia nunca está só; quando ele a mergulha a gaiteira na massa liquida, já outro sargaceiro, convocado pelo cheiro do sargaço, corre para a baba da onda, os dentes do ancinho gesticulando ameaças às algas na vara flexível, presto a colher a Flor de maio.

Mas dois, três, uma dúzia de sargaceiros que as desordens de maio embarquem nas jangadas, leves como folhas enconchadas de nenúfares, todo esse recrutamento de pescadores da Flore de Maio não é sequer um fecho, um rastro da legião que as trovoadas de agosto conclamam à praia.

Quando aparece o sargaço, que um o vê, este põe-se ao largo, e daí a pouco a Apúlia despovoa-se, entra na água até ao pescoço e, mesmo de pé, sem uma tábua de jangada, vão enganchando o argaço, como os dentes de um ancinho, varrendo-o para seco, recuando-o para terra, até o depor aos pés da areia.

 A praia da Apúlia em um dia de 1908, grande abundância de sargaço

Homens, mulheres, crianças, velhos, novos, tudo trabalha, tudo ajuda, tudo entra nessa comparsaria febril de labor costeiro, numa solidariedade de povoação rural a braços com um incêndio.

Num ardor de construção para certame cíclico, balizas súbitas delimitam a areia; e essas balizas, dentro das quais se movem os sargaceiros da mesma família, a lanço de ganchorra vão acrescentando a prosperidade de novos andares às suas tulhas de algas, de limos, de toda a policromica família do sargaço, lucilando, crepitando como um rescaldo de matizes.

E então não há horários, não há sono, não há sestas; enquanto o mar dá argaço colhe-se, porque assim como vem assim vai, assim como o traz assim o leva a onda varia.

Com as branquetas encharcadas, a cara borrifada, o corpo todo dentro de água, vendo-se só à tona o cobre-nuca do sueste ou o perfil tis-nado do sargaceiro, ele por lá anda uma tarde, um dia inteiro, hora tremendo, hora ardendo ao sol, explorando a reia, procurando o tesouro que o mar, inconstante e esfíngico, não declara bem se quer banir de si, se raptar.

Arrumada, empilhada ao acaso, na borda de água, a carga de uma gaiteira , o sargaço abandona-a como um nadador que depusesse a porto à agua, para ir arrebatar aos monstros marítimos mais vidas arriscadas.

Por detrás dele, está a mulher, o sogro, os filhos que com outras ganchorras puxarão a presa mais para dentro de terra.

Padiola carregada com Flor de maio
Quando a abundância coagular a baliza e preciso for atirar para cima da meda com novas cargas, então! funcionará a padiola, uma padiola agrícola, sumário engradado de troncos de pinheiro: levar-se-há à beira da água onde pousará para ser coberta de uma pilha de sargaço, correada e guindada, a braço, para montículo da baliza, e o sargaço remessado como quem tomba um carro de terra para o ventre de um aterro.

"É o auge da messe!"

No ar, como armas gladiadores, as varas e os pentes das ganchorradas no ato de fenderem a água; amas de homens de branqueta dão uma imponência guerreira de outras eras ao quadro de costumes, por onde formiga a escrava minhota; saem sargaceiros à água, voltam outros, segurando as gravetas pelos bordos dos pentes à guisa de tabuleiros, repletos da rama colorida que arrasta pela praia, como bandejas de flores.

E a breve trecho, toda aquela toalha de areias de ouro fica alcatifada de uma cobertura cromática de argaço, de limos, de algas, verde-mar, lilás, verde-escuro, que disfarçam o solo do seu matiz riquíssimo e inundam o ar do cheiro acre do iodo.

A praia extensa desde logo se acanha para trapalhice dessa industria extractiva que a grande percentagem de fosforo e de potássio tornam depois de seco um precioso adubo.

Por toda a Apúlia, desde os tectos de palhiço aos cunhais da Apúlia-velha, pelos caminhos, pelas estradas, pelos campos, o sargaço anuncia a sua presença fecundadora, desde as portas das Necessidades(2), onde já se sente no ar um franco activo cheiro que não é bem o da maresia mas sim o do sargaço, secando em medas aos ar livre, prometendo fertilidade à terra.

As tardes de desembarque do pilado(3), com o seu tumultuar de carros de bois, metendo meia roda na água, para as embarcações - ainda de verga ao alto e vela já arreada - vararem o lastro, são uma miniatura mesquinha a cheia de uma levada em fúria expelisse os despojos da caudal depois de haver rebentado e trazido na enxurrada os jazigos de uma mina! tardes em que a pequenez e a obscuridade da Apúlia se vingam na grandeza e na típica originalidade de um quadro de costumes que dá vontade de perguntar, com a mesma tristeza de António Nobre:


"Onde estão os pintores do meus país estranho
Que vêem tudo isto e não vêem pintar?"               JOAQUIM LEITÃO


NOTA DA REDAÇÃO - O mar é, sem dúvida, o mais provido, o mais rico dos depósitos que a natureza põe generosamente à disposição do homem; tão generosamente que nem sequer ele precisa, como sucede com a terra, de semear antes, plantar e amanhar. Não corre também o risco de que as intempéries lhe percam as colheitas, porque, até pelo contrário, são as tempestades que destacam do imenso banco do mar de sargaço esses densos rolos de algas, que as correntes conduzem à praia da Apúlia, como a várias outras, e que o lavrador acolhe pressuroso como um dos mais fertilizantes adubos. É conveniente lembrar que a apanha do sargaço, que no artigo do nosso colaborador o leitor encontra minuciosamente descrita, não deve confundir-se de nenhum modo com a barbara operação que se chama sapeira e que tão prejudicial se torna a pesca.»
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(1) P. Leal e padre Carvalho
(2) Freguesia do conselho de Barcelos, muito próximo da Apúlia
(3) Caranguejos

Na edição semanal do Jornal "O Século" em 1908

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