FLOR DE MAIO
"Sou o correio jaral
não me posso demorar."
"Ou passa ou deixa passar."
Fotografia de 1908 - lugar das Pedrinhas - Apúlia - Esposende |
Uma dessas ramificações qualquer atira para o regaço da Apúlia com densos rolos de sargaço sempre depois de temporais, especialmente pelas trovoadas de agosto.
E enquanto não entra o vapor - as borrachas de maio ou o trovão de agosto - fica pelo campo, desinteressado do mar.
Chega maio. Renta, então a praia e sem se afadigar, sem brigar como os pescadores na partilha do mar, um ou outro, mais precisado ou mais poupado, enfia a branqueta, põe a ganchorra ao ombro e vai pentear as algas para cima de uma jangada.
Sargaceiro com a sua branqueta e ganchorra ao ombro |
Pescador de sargaço (Lugar das Pedrinhas) entrando no mar vestido com a branqueta |
Branqueta |
Sem remo, sem leme, valendo-se da própria vara da graveta se quer nortear-se, de pé, nem o declivoso dorso da onda nem o embate da jangada nos penedos o desequilibram.
fotografia de 1908 Outro aspeto da colheita da flor de maio. A galteira ou graveta (que é um enorme ancinho de ferro) pende do cabo flexível e longo, que atravessa o barco, formando um grande arco |
Como o pescador do Sena que tem sempre a seu lado a companhia de um mirone, o sargaceiro da Apúlia nunca está só; quando ele a mergulha a gaiteira na massa liquida, já outro sargaceiro, convocado pelo cheiro do sargaço, corre para a baba da onda, os dentes do ancinho gesticulando ameaças às algas na vara flexível, presto a colher a Flor de maio.
Mas dois, três, uma dúzia de sargaceiros que as desordens de maio embarquem nas jangadas, leves como folhas enconchadas de nenúfares, todo esse recrutamento de pescadores da Flore de Maio não é sequer um fecho, um rastro da legião que as trovoadas de agosto conclamam à praia.
Quando aparece o sargaço, que um o vê, este põe-se ao largo, e daí a pouco a Apúlia despovoa-se, entra na água até ao pescoço e, mesmo de pé, sem uma tábua de jangada, vão enganchando o argaço, como os dentes de um ancinho, varrendo-o para seco, recuando-o para terra, até o depor aos pés da areia.
A praia da Apúlia em um dia de 1908, grande abundância de sargaço |
Homens, mulheres, crianças, velhos, novos, tudo trabalha, tudo ajuda, tudo entra nessa comparsaria febril de labor costeiro, numa solidariedade de povoação rural a braços com um incêndio.
Num ardor de construção para certame cíclico, balizas súbitas delimitam a areia; e essas balizas, dentro das quais se movem os sargaceiros da mesma família, a lanço de ganchorra vão acrescentando a prosperidade de novos andares às suas tulhas de algas, de limos, de toda a policromica família do sargaço, lucilando, crepitando como um rescaldo de matizes.
E então não há horários, não há sono, não há sestas; enquanto o mar dá argaço colhe-se, porque assim como vem assim vai, assim como o traz assim o leva a onda varia.
Com as branquetas encharcadas, a cara borrifada, o corpo todo dentro de água, vendo-se só à tona o cobre-nuca do sueste ou o perfil tis-nado do sargaceiro, ele por lá anda uma tarde, um dia inteiro, hora tremendo, hora ardendo ao sol, explorando a reia, procurando o tesouro que o mar, inconstante e esfíngico, não declara bem se quer banir de si, se raptar.
Arrumada, empilhada ao acaso, na borda de água, a carga de uma gaiteira , o sargaço abandona-a como um nadador que depusesse a porto à agua, para ir arrebatar aos monstros marítimos mais vidas arriscadas.
Por detrás dele, está a mulher, o sogro, os filhos que com outras ganchorras puxarão a presa mais para dentro de terra.
Padiola carregada com Flor de maio |
"É o auge da messe!"
No ar, como armas gladiadores, as varas e os pentes das ganchorradas no ato de fenderem a água; amas de homens de branqueta dão uma imponência guerreira de outras eras ao quadro de costumes, por onde formiga a escrava minhota; saem sargaceiros à água, voltam outros, segurando as gravetas pelos bordos dos pentes à guisa de tabuleiros, repletos da rama colorida que arrasta pela praia, como bandejas de flores.
E a breve trecho, toda aquela toalha de areias de ouro fica alcatifada de uma cobertura cromática de argaço, de limos, de algas, verde-mar, lilás, verde-escuro, que disfarçam o solo do seu matiz riquíssimo e inundam o ar do cheiro acre do iodo.
A praia extensa desde logo se acanha para trapalhice dessa industria extractiva que a grande percentagem de fosforo e de potássio tornam depois de seco um precioso adubo.
Por toda a Apúlia, desde os tectos de palhiço aos cunhais da Apúlia-velha, pelos caminhos, pelas estradas, pelos campos, o sargaço anuncia a sua presença fecundadora, desde as portas das Necessidades(2), onde já se sente no ar um franco activo cheiro que não é bem o da maresia mas sim o do sargaço, secando em medas aos ar livre, prometendo fertilidade à terra.
As tardes de desembarque do pilado(3), com o seu tumultuar de carros de bois, metendo meia roda na água, para as embarcações - ainda de verga ao alto e vela já arreada - vararem o lastro, são uma miniatura mesquinha a cheia de uma levada em fúria expelisse os despojos da caudal depois de haver rebentado e trazido na enxurrada os jazigos de uma mina! tardes em que a pequenez e a obscuridade da Apúlia se vingam na grandeza e na típica originalidade de um quadro de costumes que dá vontade de perguntar, com a mesma tristeza de António Nobre:
"Onde estão os pintores do meus país estranho
Que vêem tudo isto e não vêem pintar?" JOAQUIM LEITÃO
NOTA DA REDAÇÃO - O mar é, sem dúvida, o mais provido, o mais rico dos depósitos que a natureza põe generosamente à disposição do homem; tão generosamente que nem sequer ele precisa, como sucede com a terra, de semear antes, plantar e amanhar. Não corre também o risco de que as intempéries lhe percam as colheitas, porque, até pelo contrário, são as tempestades que destacam do imenso banco do mar de sargaço esses densos rolos de algas, que as correntes conduzem à praia da Apúlia, como a várias outras, e que o lavrador acolhe pressuroso como um dos mais fertilizantes adubos. É conveniente lembrar que a apanha do sargaço, que no artigo do nosso colaborador o leitor encontra minuciosamente descrita, não deve confundir-se de nenhum modo com a barbara operação que se chama sapeira e que tão prejudicial se torna a pesca.»
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(2) Freguesia do conselho de Barcelos, muito próximo da Apúlia
(3) Caranguejos
Na edição semanal do Jornal "O Século" em 1908
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