De Norte a Sul do país há milhares de proprietários sem saber como provar que as terras e casas que compraram ou herdaram junto ao mar e aos rios são suas.
A manter-se a lei em vigor, os donos de muitas casas junto aos rios teriam de pagar uma taxa ao Estado.
A polémica lei que obriga os proprietários de terrenos e casas situados no Domínio Público Hídrico a interporem ações judiciais, até 1 de Julho, para obterem o reconhecimento da respetiva propriedade tem de ser revista até essa data, mas ainda não se sabe como é que o problema vai ser resolvido.
O que já se sabe é que o prazo para provar a propriedade será alargado e que os meios de prova deverão tornar-se mais simples.
Os grupos parlamentares do PSD e do PS concordam com o princípio de que não devem ser os proprietários a “pagar” pelas dificuldades de aplicar a lei em vigor e pela inexistência, em grande parte do país, de um levantamento geo-referênciado dos avanços e recuos das águas que permita demarcar claramente o Domínio Público Hídrico. Fora isso estão de acordo quanto à necessidade de dar mais tempo aos proprietários e de facilitar a produção da prova exigida por lei.
O Domínio Público Hídrico foi criado há 150 anos, mas em 2005 a Assembleia da República aprovou a Lei da Titularidade dos Recursos Hídricos (Lei 54/2005), que estabelece a obrigatoriedade de os proprietários de casas e terrenos localizados numa faixa, em regra de 50 metros, contígua ao mar ou a quaisquer águas “navegáveis ou flutuáveis” obterem o reconhecimento judicial dessa propriedade. Para isso teriam de intentar uma acção judicial até 31 de Dezembro de 2013, através da qual provassem, documentalmente, que as suas parcelas já eram propriedade particular antes de 1864 ou de 1868, conforme os locais, quando foi criado o Domínio Público Hídrico.
Na falta de reconhecimento judicial da propriedade, o Estado poderia impor a desocupação das parcelas ou cobrar taxas pela sua ocupação – mesmo que os proprietários as tivessem adquirido legalmente e pagassem os impostos correspondentes.
Face às dificuldades práticas de aplicação desta lei e à constestação que ela gerou, a Assembleia da República aprovou em Outubro passado um diploma, nos termos do qual “os requisitos e prazos necessários para a obtenção do reconhecimento de propriedade” de tais parcelas deverão ser revistos até ao próximo dia 1 de Julho. Até essa data os proprietários podem continuar a intentar as acções de reconhecimento das suas propriedades, mas só algumas dezenas o conseguiram fazer até agora.
De acordo com o deputado Maurício Marques, do PSD, a maioria parlamentar está “consciente” da controvérsia e dos conflitos surgidos com a lei de 2005. “Vamos apresentar, até final do mês, um projeto-lei que altera os prazos e os meios de prova”, afirmou, sem mais detalhes, acrescentando que “compete ao Estado traçar a linha do Domínio Público Hídrico”, para lá da qual os proprietários terão de obter o reconhecimento das respectivas propriedades. Esse trabalho de delimitação, sublinhou, ainda só foi efectuado nas antigas regiões hidorgáficas do Algarve e do Centro.
Por seu lado, o deputado socialista Miguel Freitas, que integra a comissão parlamentar que deverá preparar a revisão da lei, afirma que “o PS defende que o reconhecimento da propriedade seja feito por via administrativa e não através de uma acção judicial”. Na sua opinião, deve haver “um amplo consenso” na Assembleia da República para resolver este problema, embora o PS não esteja disponível para ceder num aspecto: “Não aceitamos a destruição do Domínio Público Hídrico e achamos que o interesse público deve prevalecer.”
No Algarve, a aplicação da Lei nº 54/2005 coloca no Domínio Público Hídrico a maior parte dos imóveis da zona baixa de Albufeira, Quarteira e Lagos, para já não falar nos empreendimentos turísticos que se estendem de uma ponta à outra da região, mesmo à beira das arribas. O mesmo acontece um pouco por todo o país, à beira-mar e nas margens dos cursos de água, como é o caso de Aveiro, onde há ruas inteiras em pleno Domínio Publico Hídrico.
Américo Bárbara, antigo embaixador de Portugal no Conselho da Europa, é um dos muitos proprietários que de Norte a Sul têm esbarrado na impossibilidade de reunir as provas que a lei exige. No seu caso tem de provar documentalmente que os 3,8 hectares que possui junto à praia da Fontinha, em Lagoa, já eram propriedade particular antes de 1868.
Consegui provar que o terreno já pertencia ao meu avô, em 1936, daí para trás será muito difícil”. O antigo diplomata, reformado, não hesita em classificar a lei como um “esbulho”.
O deputado Maurício Marques reconhece que “muitos dos meios de prova exigidos são inexistentes”. Do lado do PS, Miguel Freitas admite a “simplificação dos processos” de reconhecimento de propriedade nas zonas urbanas consolidadas.
Para ilustrar as dificuldades com que se tem deparado para reunir os meios de prova exigidos por lei, o advogado João Leandro, de Portimão, refere o facto de ter havido, há muitos anos, um “incêndio que destruiu os registos antigos” relativos à zona do barlavento algarvio. Embora as câmaras de Portimão e Lagos passem certidões aconfirmar esse facto, insiste, “fazer prova é muito difícil”.
Nos casos em que os proprietários não consigam o reconhecimento das suas propriedades, a lei prevê a aplicação de uma taxa de ocupação de espaço público de cerca de 10 euros por metro quadrado. “Há empreendimentos no Algarve que iriam pagar 80 mil euros por ano”, diz o presidente da Associação dos Hotéis e Empreendimentos Turísticos do Algarve, Elidérico Viegas, acrescentando que a taxa não incide só sobre a área que ocupam as construções, mas também sobre os jardins e outros espaços.
Onde começa o domínio público?
O traçado da linha que delimita o Domínio Público Hídrico (marítimo, lacustre e fluvial) “deve ser analisado caso a caso” em muitos locais, salienta Sebastião Teixeira num trabalho efectuado no quadro da ex-Administração da Região Hidrográfica do Algarve e intitulado “Demarcação do Leito e da Margem das Águas do Mar no Litoral Sul do Algarve”.
O atual diretor regional da Agência Portuguesa do Ambiente no Algarve adverte por outro lado: “Nas praias em que a intervenção humana alterou a morfologia natural, por pisoteio das dunas, através de alimentação artificial ou na sequência de execução de obras de proteção costeira”, a demarcação da linha máxima [50 metros] da preia-mar das águas vivas equinociais [que define o Domínio Público Hídrico] “deve reflectir essas alterações”.
Domínio Público Hídrico: Quercus contra facilitação de regras de reconhecimento da propriedade privada