Há um navio quinhentista "praticamente intocado" na costa de Esposende
“Este navio saiu de algum porto, e não chegou ao destino. Tem de haver, algures, um registo dessa viagem”, nota Ana Almeida. Alexandre Monteiro corrobora. Afinal, na investigação ao naufrágio do navio Nuestra Señora del Rosario (Tróia, Grândola, 1598) encontrou 600 páginas de documentação, oficial e até pessoal, em arquivos portugueses e espanhóis. E ninguém acredita que a perda de um navio que, pelas dimensões de algum do seu madeirame, teria cerca de 30 metros de comprimento de fora a fora, passasse despercebida.
Dentro deste período há o registo do afundamento do Nossa Senhora da Rosa, perdido em 1577 “através de Esposende”, quando carregava vinho e breu das Canárias para o porto de Vila do Conde, situado poucas milhas a sul, mas os investigadores que se debruçam sobre o naufrágio de Belinho consideram que não será essa a embarcação que encontraram, pois este “tem um porte bem maior do que a maioria dos navios que percorriam as rotas das Canárias, Madeira e Açores no século XVI”.
A equipa espera que, sob a camada de sedimentos, que Filipe Castro gostaria de limpar, com recurso a uma bomba de sucção, se houvesse recursos para isso, o navio de Belinho tenha muito mais a contar. Ao contrário do que acontecia em naufrágios perto da praia e de povoações, em que nem as madeiras resistiam aos actos de pilhagem — o que explica o uso de partes dos cascos nas casas mais antigas de Angra do Heroísmo, assinala Alexandre Monteiro —, esta embarcação parece ter resistido à cupidez dos seus, e dos nossos, contemporâneos. Que, podendo, nunca deixariam no mar colubrinas em bronze semelhantes à que foi encontrada no navio português Bom Jesus, descoberto em Oranjemund, na costa da Namíbia, e que têm mercado no sector das antiguidades.
“Se encontrássemos objectos pessoais, seria muito importante” para a investigação, assume o director do ShipLab, que desde 2015, através do projecto europeu ForSeaDiscovery, do qual faz parte com Alexandre Monteiro, participa no estudo dos achados arrojados à praia. O material encontrado já lhes dá água pela barba e abriu portas a vários projectos de investigação, como o de Adolfo Martins, que está a fazer doutoramento na Universidade de Gales Trinity Saint David sobre a morfologia das 80 peças de madeira recolhidas. Os seus anéis, analisados com recurso à dendrocronologia, permitiram excluir a hipótese de provirem de árvores do Norte da Europa, e as técnicas de construção naval são semelhantes às usadas por cá naquele período, mas é preciso mais informação para se poder confirmar a origem deste navio.
Sobre este naufrágio há imensas perguntas ainda sem resposta — e muitas perguntas por fazer —, mas, neste momento, uma das dificuldades é garantir uma equipa baseada no Norte do país, que consiga continuar, de perto e com maior regularidade, este projecto de investigação arqueológica que seria impossível sem o empenho da autarquia. Para lá dos elementos do município, e dos achadores, que vivem em Esposende, todos os que, até agora, participaram na recolha e estudo destes achados estão envolvidos em múltiplos projectos, em várias partes do mundo, e não é fácil mobilizá-los para Belinho, para situações de emergência ou, por exemplo, para uma campanha de mergulho, caso o mar o permita.
O mar tem sido o marca-passo desta investigação. Foi ele que denunciou o naufrágio, atirando despojos para a praia em 2014, mas esta semana não deixou que lhe levassem os canhões que guarda ciosamente, há cinco séculos. Aliás, uma tentativa de mergulho de Alexandre Monteiro ia correndo muito mal, no domingo passado. “O naufrágio de Belinho esteve quase a fazer a sua última vítima” dizia, já meio a brincar, passado este episódio em que se viu atirado contra as pedras, e se teve de livrar do cinto de lastro e das botijas de ar, antes de ser salvo por João Sá. O escultor que alertara, em 2014, as autoridades para a importância destes achados, que encontrara, com familiares, na praia, voltou a ser fulcral para esta história. Ou não fosse ela um exemplo de cooperação entre cidadãos e a comunidade científica.
FEUP tem submarinos apontados à história
Há mais, na costa de Belinho, do que aquilo que se vê a olho nu (e o mar nem sempre está límpido para ajudar). Sob um manto de sedimentos e pedras há um navio inteiro por descobrir, e a detecção da área por onde se espalham os destroços deste naufrágio do século XVI seria impossível sem o apoio da tecnologia do Laboratório de Sistemas e Tecnologia Subaquática (LSTS) da Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto.A instituição, referência mundial no desenvolvimento, construção e operação de submarinos autónomos, é um dos parceiros desta investigação, à qual José Pinto, gestor de projectos no LSTS, foi atraído por causa de Alexandre Monteiro. A convite da Câmara de Esposende, este organizou um workshop de arqueologia subaquática no qual o engenheiro participou, por curiosidade em relação a uma área para a qual os submarinos com que trabalha são de grande utilidade. E a verdade é que, encantado com as histórias relatadas pelo arqueólogo, não saiu dessas sessões sem manifestar o interesse do laboratório em apoiar o seu trabalho.
Belinho, onde o LSTS está a utilizar sonares de varrimento lateral, capazes de ler o fundo do mar, mesmo abaixo da camada de sedimentos, fornecendo preciosas imagens tridimensionais dos sítios, e magnetómetros que detectam a presença de materiais ferrosos, como os pregos e cavilhas usados na construção naval, âncoras ou, neste caso, canhões, é só um dos projectos em que o laboratório está a colaborar com a arqueologia. José Pinto tem visitado outros locais, aconselhado por Alexandre Monteiro, e mesmo nas sessões de campo realizadas em Esposende recolheu dados sobre outros possíveis naufrágios, ou não fosse esta uma costa rica em vestígios que vão desde a época romana às décadas mais recentes.
O trabalho do LSTS tem sido tão profícuo que, na Universidade do Texas M&D, Filipe Castro, o português que ali dirige o ShipLab, já convenceu o responsável pelo departamento de Engenharia Oceânica local a estudar a possibilidade de parcerias com este grupo da FEUP, considerado, naquela universidade texana, “os melhores do mundo no que fazem”, garante o professor de Antropologia, explicando que já houve contactos no sentido de se avançar com um acordo de cooperação.