Polícia expulsa a família que ocupou uma casa de habitação social, a câmara a seguir manda entaipar portas e janelas. O problema dos desalojados foi empurrado para o Governo resolver
Cai a noite, o frio aperta, Stefan Boti e a mulher vão dormir para uma tenda montada dentro de um pequeno bote, ancorado junto ao estaleiro do porto de Olhão. A barraca que o casal possuía há 13 anos, na ilha de São Lourenço, foi demolida. A mobília — ou melhor, os canecos que lhes restam — foi depositada num contentor. “Nenhuma demolição é feita nas ilhas-barreira em primeira habitação sem o realojamento ser feito”, garantiu o ministro do Ambiente, Ordenamento do Território e Energia, Jorge Moreira da Silva, esta semana na Assembleia da República. Em Olhão, a história conta-se de outra forma: quatro famílias reclamam há duas semanas apoio social de emergência. A câmara, socialista, possui casas de habitação social, mas entende que “a responsabilidade do realojamento dessas famílias é do Ministério do Ambiente”.
Um grupo de quatro deputados do Partido Socialista, encabeçado por Miguel Freitas, eleito pelo distrito de Faro, subscreveu um requerimento a exigir a presença do ministro Jorge Moreira da Silva para “audições urgentes sobre as demolições na ria Formosa” na Comissão de Ambiente, Ordenamento do Território e Poder Local. Em causa, dizem os parlamentares, “subsistem sérias dúvidas sobre se não estará a ser colocado em causa o direito à habitação”. A Sociedade Polis da Ria Formosa, com mandato do Governo, tomou posse administrativa das habitações, garantido o realojamento em todos os casos de “única e comprovada primeira habitação”. Das cerca de 700 casas que está previsto irem abaixo em toda a área protegida, foram demolidas 150 e estão mais 60 na lista a derrubar nos próximos dias. As casas de segunda habitação nas ilhas do Farol e de Faro, situadas em espaços que foram desafetados do Domínio Público Marítimo — ainda que se situem em zonas consideradas de risco —, permanecem intocáveis. No concelho de Olhão, com as demolições nos ilhotes, ficaram doze famílias à deriva habitacional.
Stefan Boti, de 56 anos, à falta de melhores oportunidades de trabalho, tornou-se pescador. Vivia há 13 anos numa barraca, na ilha de São Lourenço. No dia 27 de Janeiro, a casa foi abaixo. No dia seguinte, decidiu ir à reunião pública da Câmara de Olhão pedir ajuda. “O presidente [António Pina] disse que estava à espera da resposta a um pedido de reunião com o ministro [Jorge Moreira da Silva] para resolverem o problema”, recorda. Os vereadores manifestaram-lhe solidariedade. “Palavras bonitas”, diz.
“Pior do que animais”
Quando chegou o meio-dia, a hora a que lhe disseram que haveria resposta, esperou pela notícia que chegaria de Lisboa. Caíram por terra todas as esperanças que tinha. “O presidente passou por mim a falar ao telefone e só me disse: ‘Ainda não tenho solução para vocês.’” Passo seguinte: decide ocupar uma casa de habitação social, devoluta, no Siroco. “Os vizinhos emprestaram-nos vassouras e esfregonas, fizemos a limpeza e ficámos lá a dormir”, conta a nora, Maria de Jesus Pina, que também perdeu a casa que possuía na ilha. Na manhã seguinte tiveram uma surpresa. “Chegou a polícia e mandou-nos para a rua.” A câmara, a seguir, mandou entaipar as portas e janelas com tijolos. “Somos tratados pior do que animais”, desabafa Boti, procurando proteger-se do frio que não dá tréguas.
O presidente da câmara, questionado pelo PÚBLICO, justifica em resposta por escrito a posição de força que tomou: “Foi ocupada uma casa de habitação social que será colocada a concurso de acordo com o regulamento municipal, de maneira a que todos os olhanenses estejam em situação de igualdade.” Maria de Jesus Pina, companheira de um filho de Boti — mãe de três crianças e grávida de cinco meses —, conta a sua história: “Depois de ficar sem casa, veio a Polícia Marítima sinalizar os meus filhos, dizendo que estavam em risco.” O sogro, Stefan Boti, puxa de um documento oficial para mostrar que não é um clandestino em Portugal, exibindo o Certificado de Registo de Cidadão da União Europeia. O documento, assinado por António Pina, datado de 7 de Fevereiro de 2014, confirma que o munícipe, de nacionalidade romena, reside na ilha de São Lourenço.
Os deputados do grupo parlamentar do PS sublinham o que disse o ministro Jorge Moreira da Silva, na terça-feira, na Comissão de Ambiente, Ordenamento do Território e Poder Local: “Nenhuma demolição é feita nas ilhas-barreira em primeira habitação sem o realojamento feito.” António Pina diz ter “algumas dúvidas” de que este princípio esteja a ser cumprido.
Sobre o pequeno bote começa a cair a noite. Enrolado sobre si mesmo para tentar lutar contra o frio, Boti conta apenas com a generosidade dos ciganos que vivem numa barraca próximo. “Deixam-nos aquecer à fogueira.”
O presidente da Sociedade Polis da Ria Formosa, Sebastião Teixeira, diz que o processo de realojamento está a ser tratado “numa acção conjunta entre a Câmara de Olhão, Sociedade Polis e Segurança Social”. Dos doze casais que estavam na lista a realojar, adianta, “restam três ou quatro casos”. Um dos processos que estão em reavaliação é o de Carlos Fernandes
Blogue das Pedrinhas & Cedovém com PÚBLICO
(família de Stefan Boti)
Pescadores desalojados da ria Formosa vivem numa tenda no estaleiro de Olhão
A família de Stefan Boti não tem outra solução, no curto prazo, do que continuar a viver numa tenda junto ao estaleiro do porto de Olhão. A barraca que possuía no ilhote de São Lourenço há 13 anos foi demolida, no decorrer a operação de requalificação da ria Formosa que prossegue até final do ano. A Sociedade Polis Litoral da Ria Formosa (SPLRF) considera que o cidadão, de origem romena, não reúne os requisitos para beneficiar do programa de realojamento. Em risco de serem remetidos à condição de “sem abrigo” encontram-se mais duas famílias. A câmara de Olhão não garante qualquer prioridade no acesso às casas de habitação que município irá disponibilizar.
O direito ao realojamento, esclareceu a Sociedade Polis Litoral da Ria Formosa (SPLRF), em comunicado de imprensa, não contempla o caso de Stefan Boti nem o da família de Carlos Fernandes – desempregado e com duas filhas menores - cuja casa irá ser derrubada nos próximos dias. A SPLRF informa que “essas pessoas apresentaram várias moradas fora dos ilhotes com, por exemplo caso de Stefan Boti, o registo de residência de cidadão da União Europeia feito junto da Câmara Municipal de Olhão”.
Para se inteirar dos problemas socais relacionados com este processo, o deputado do PS Miguel Freitas deslocou-se, na passada segunda-feira, ao porto de Olhão. “O quê, o senhor Boti, cidadão europeu a morar há 13 anos no ilhote, perdeu os direitos em Portugal?”, questionou, prometendo levantar o assunto na comissão parlamentar de ambiente, ordenamento do território e poder local, na presença do ministro do Ambiente, Carlos Moreira da Silva.
A Sociedade Polis Litoral da Ria Formosa, criada em 2008, tendo como acionistas o Estado e os municípios de Loulé, Faro, Olhão e Tavira, identificou 193 casas a demolir nesta zona da área protegida. O direito ao realojamento, sublinha, contempla apenas os casos de “primeira e única habitação”. O processo de realojamento, diz a Polis, está a ser seguido por um Missão de Acompanhamento, que integra elementos das áreas social e ambiental, designadamente da SPLRF, Câmara de Olhão e Centro Distrital de Faro do Instituto da Segurança Social.
(António Pina)
Por seu lado, o presidente da câmara, António Pina, PS, adiantou, na presença de Miguel Freitas, que a câmara vai reparar um conjunto de casas de habitação social para os mais necessitados do concelho, que acederão às habitações “em situação de igualdade”. Stefan Boti ficou sem palavras. Por seu lado, Carlos Fernandes, com duas filhas menores, disse que já tinha sido informado pela capitania de que a casa que possui no ilhote do Coco está na lista das próximas demolições. “Para onde vou viver?", questionou. A oferta que lhe fizeram, disse, foi o pagamento de uma renda de habitação durante três meses, sem mais garantias. “Nenhuma construção comprovada como primeira e única habitação é demolida antes de ser encontrada solução adequada para a questão do realojamento”, sublinha a Polis. Carlos Fernandes justifica as ambiguidades sobre o seu caso: “Dei a morada da casa da bisavó da minha mulher, em Olhão, quando tirei o número de contribuinte - no ilhote não existe código postal” .
O deputado socialista, eleito pelo distrito de Faro considera, ao contrário do que afirma SPLRF, que “não está a ser assegurado o direito à habitação” para alguns dos desalojados. Por outro lado, entende que o plano de requalificação da ria Formosa “resume-se a deitar casas abaixo, sem que previamente tenha sido assegurado um plano de requalificação ambiental e financiamento para as pessoas que ficam desalojadas”. Do conjunto das 193 casas a remover, informa a SPLRF, apenas oito foram consideradas de “primeira e única habitação”, das quais cinco já foi encontrada alternativa de realojamento.
(Miguel Poiares)
A presença do ministro adjunto e do Desenvolvimento Regional, Miguel Poiares Maduro, nesta quarta-feira, no Teatro das Figuras, em Faro, para apresentar a filosofia do Portugal 2020 – o novo pacote de fundos comunitários - juntou os três casais de moradores desalojados que empunhavam cartazes onde se lia “Terrorismo social”. Em solidariedade, juntaram-se também outros dos proprietários de casas das ilhas do Farol, Hangares e praia de Faro, protestando: “As casas não são ilegais, foram construídas à vista de toda a gente”, gritou José Lezinho, com casa nos Hangares, pedindo ao governante para ser ouvido, o que não aconteceu. Os manifestantes ficaram à parte do edifício onde decorreu a cerimônia, barrados por cordão policial.